Falta de confiança na escola formal leva pais a educar seus filhos em casa
São Paulo – A rotina diária de estudos começa cedo, logo depois do café da manhã. Atentas, as crianças observam as explicações da professora, fazem perguntas quando as dúvidas aparecem e seguem as orientações antes de darem início às atividades propostas para a assimilação dos conteúdos que seguem diretrizes do Ministério da Educação (MEC).
Típica de qualquer escola brasileira, a cena guarda um detalhe que faz toda a diferença: a aula é dada na sala de estudo da casa de Melissa Citeli, em Utinga, bairro de Santo André, no ABC paulista. A bióloga é mãe – e professora – de Felipe, de 4 anos, e Henrique, de 6. Ela e o marido, o analista de sistemas Marcos Citeli, dedicam boa parte do dia ao ensino e ao planejamento das aulas dos filhos, por meio de estudos sobre pedagogia e política educacional.
A família é uma entre as mais de mil em todo o país que praticam o chamado Homeschooling, traduzido para o português como educação domiciliar. A estimativa é da Associação Nacional de Ensino Domiciliar (Aned), com base no cadastro daquelas que contatam a entidade com frequência. Mas há fortes desconfianças de que o número seja bem maior, podendo chegar a 2 mil, e que esteja em franco crescimento. Isso porque tornam-se cada vez mais comuns grupos de discussão sobre o tema na internet, bem como o interesse acadêmico.
A dificuldade para a obtenção de informações mais precisas sobre as famílias que decidiram educar seus filhos em casa faz todo sentido: embora não seja proibida – e nem recomendada – pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB), essa modalidade de ensino não é reconhecida e nem regulamentada por lei no Brasil. O mesmo não ocorre no resto do mundo: a homeschooling está regulamentada em 64 países.
Na falta de regras, os pais-educadores enfrentam insegurança jurídica: mesmo conduzindo uma rotina intensa e organizada de estudos com seus filhos, podem ser indiciados por “abandono intelectual” – daí o fato de muitos deles preferirem o anonimato que mascara as estatísticas.
Na tentativa de regularizar a prática e evitar que tantos casos continuem chegando aos tribunais, o deputado federal Lincoln Portela (PR-MG) propôs o Projeto de Lei 3179, de 2012. Se for aprovado, vai acrescentar um parágrafo ao artigo 23 da LDB, tornando “facultado aos sistemas de ensino admitir a educação básica domiciliar, sob a responsabilidade dos pais ou tutores”. A proposta, que já teve parecer favorável da Comissão de Educação da Câmara, prevê supervisão e avaliações periódicas da aprendizagem por órgãos oficiais.
Portela é taxativo: “Os pais têm esse direito. Devem ser autorizados e não discriminados ou ameaçados de perder a guarda por abandono intelectual”, afirma. Quanto à certificação dessas crianças, a ideia é que as crianças possam ser avaliadas nas próprias escolas ou pelos Conselhos Tutelares. “E, por que não?, que os próprios pais passem por avaliações.”
Relatora do projeto na Comissão de Educação, a deputada Dorinha Seabra Rezende, a professora Dorinha (DEM-TO), propõe que as crianças educadas em casa estejam vinculadas regularmente a uma instituição de ensino que acompanhe seu aprendizado e que participem de avaliações oficiais, como a Prova Brasil e o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
“Estou construindo meu substitutivo no sentido de dar às famílias a possibilidade de educar em casa e ao mesmo tempo criar mecanismos para garantir o direito das crianças. Então, minha tendência é abrir a possibilidade, mas com uma série de condicionantes”, conta Dorinha. “Vou condicionar orientações pedagógica e reuniões regulares com os pais. É preciso garantir que essas crianças tenham acesso ao currículo básico do MEC, que é um direito delas.”
Opção
“Eu sempre tive essa vontade. Quando o Henrique nasceu pensei primeiramente em só colocá-lo na escola na idade obrigatória”, diz Melissa Citelli. No Brasil, o ensino fundamental é obrigatório para crianças e adolescentes com idade entre 6 e 14 anos. “Na hora de matriculá-lo na primeira série, a gente começou a avaliar. Fomos atrás de informação, conhecemos famílias que praticavam, aqui em São Paulo e no Sul. Aí decidimos que realmente íamos investir no homeschooling.”
“E por quê? Porque eu queria ficar com os meus filhos e eles também preferiram. Eu queria poder ter esse privilégio”, explica. “Eu tive algumas dificuldades, claro, não só na aplicação das disciplinas, mas na adaptação das crianças. Levou um tempinho para eles entenderem que estão em casa, porém não estão à toa. Mas procuramos não cansá-los muito. Queremos que a educação seja um prazer.”
Melissa se dedica integralmente à educação que pretende continuar oferecendo em casa até o fim do ensino médio. Tanto que, para tocar em frente seu projeto, deixou de lado a vida profissional. “Se eu estivesse trabalhando teríamos outro orçamento, claro, mas abrimos mão de algumas coisas para poder educá-los em casa. Tem mães em situação financeira difícil que também fizeram essa opção”. Como a modalidade ainda não está regulamentada no país, a certificação da educação correspondente ao ensino básico depende da realização, pelo estudante, do Enem.
Felipe e Henrique têm aulas pela manhã com a mãe. À noite, é a vez de Marcos fazer seu papel de professor, ministrando as aulas de inglês e conduzindo experiências científicas. “Eu não imponho o mesmo grau de exigência de uma escola, mas eles acabam aprendendo muito rápido. Notamos com muita facilidade o dia que eles não estão rendendo. Se hoje não estão indo bem em matemática, passamos então para ciências ou vamos fazer aula de culinária. Essa flexibilidade é impossível na escola, que segue à risca o calendário de aulas. Se é português, é português; se é matemática, é matemática”, ressalta Melissa.
Em geral, a jornada vai até as 13h. Mas as aulas de Felipe, que ainda não começou a ser alfabetizado, são mais flexíveis. “Em muitos momentos não há opção. Tem que sentar e estudar; e eles aprendem a ter disciplina”, diz a mãe-educadora. “Mas eu não tenho como descansar, pensando que a professora vai ensinar. Somos a principal fonte de informação deles e procuramos oferecer oportunidades educativas a todo momento.”
Contracultura
A educação domiciliar praticada por Melissa e Marcos começou a ser pensada a partir de 1950, quando filósofos e educadores, como o austríaco Ivan Illich e os norte-americanos Paul Goodman e John Holt, passaram a refletir sobre a capacidade da escola moderna em inspirar nos alunos valores sociais apropriados ou até mesmo a eficiência no cumprimento do seu papel de educar. A contestação ganhou novos adeptos, como os líderes religiosos protestantes Raymond e Dorothy Moore e James Dobson, e culminou com o surgimento do movimento pela chamada Home Education ou Homeschooling.
De acordo com o pedagogo e pesquisador do tema, Fábio Schebella, do Mato Grosso do Sul, o objetivo maior dos pais que optam pela modalidade é que suas crianças aprendam a estudar, a pesquisar e a buscar conhecimento de forma autônoma. “Em comum, as famílias têm o desejo de maior controle sobre que é ensinado, com valores alinhados aos da família; o descontentamento com problemas que podem ocorrem no ambiente escolar, como violência e bullying; e a incompatibilidade com o calendário escolar de famílias que precisam viajar muito, como de embaixadores e diplomatas”, diz. “Mas é necessário muito tempo para dedicação à pesquisa, ao planejamento e a ajustes da proposta pedagógica”, ressalta. “E ao contrário do que se pensa, a maioria das famílias que fazem essa opção são de classe média e não escolhem o ensino domiciliar por questões religiosas.”
Para o sociólogo André de Holanda, que pesquisou o tema na Universidade de Brasília (UnB), a homeschooling configura um fenômeno recente na América do Sul, estimulado principalmente por líderes evangélicos norte-americanos em missão religiosa ou que se radicaram nesses países.
Ele conta que os primeiros casos começaram a vir a público a partir de meados de 1990, quando famílias adeptas passaram a ser denunciadas por abandono intelectual. Duas delas chegaram a ser obrigadas a matricular seus filhos na escola e uma obteve autorização formal das autoridades para continuar educando em casa. “Os conselhos tutelares passaram a visitar diversas famílias e hoje centenas de pais aguardam a regularização da prática pela lei”, conta.
Perfil
Segundo Holanda, faltam estudos aprofundados sobre o tema principalmente do ponto de vista pedagógico e psicológico, mas os dados que coletou em entrevistas com 62 pais residentes em diversos estados, de todas as regiões brasileiras, esboçam um perfil dos pais-educadores brasileiros – que chega a ser semelhante ao de outros países, em especial dos Estados Unidos. Os pais têm em média 36 anos de idade; metade deles tem pelo menos 12 anos de estudo – a maioria em escola pública – e em sua grande parte pertence à classe média, gastando pouco com a educação domiciliar dos filhos – 58% afirmou gastar mensalmente até R$ 200.
Quanto aos educandos, a média de idade é de 8 anos, tendo a maioria 6 anos quando passaram a ser educados em casa. Quanto ao aspecto pedagógico, a maioria dos pais adota alguma proposta de ensino e aprendizagem ou experimentam vários métodos e filosofias educacionais ao mesmo tempo, adotando currículos e horários determinados (leia destaque).
Ainda conforme o estudo, as motivações religiosas e/ou morais foram manifestadas por todos os pais entrevistados, bem como as críticas ao ambiente de socialização das escolas, que eles consideram nocivo. Outros citaram experiências negativas.
“No entanto, a ampla maioria desses pais defende a existência da escola pública e do ensino formal na rede particular, com regulamentação do estado. Já para mais da metade deles (62%), o poder público deve se abster de regulamentar a educação em casa, e uma minoria contestou a capacidade do governo para supervisionar e julgar eticamente as famílias que optam por educar em casa”, diz.
Para a filósofa e professora da pós-graduação em Educação e Currículo da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, Branca Jurema Ponce, a educação domiciliar segue uma tendência norte-americana para quem o Estado não deve se meter na vida do indivíduo. Assim, os pais teriam o direito de educar em casa. “Alguns até dizem: não, não quero meu filho exposto a más influências. Eu contrato professores, materiais didáticos. Vocês podem vir aqui, fazer uma avaliação de como os meus filhos são bons”, lembra.
No entanto, conforme faz questão de frisar, a escola, além de educar, tem uma função social ao proporcionar a convivência, a construção de cultura. “Tem de ir para a escola sim, sou radical quanto a isso. É preciso conviver coletivamente, formar conceitos coletivos”, diz a especialista, que defende o direito do Estado de criminalizar o pai e a mãe que não mandar o filho para a escola. “Um dos maiores avanços que tivemos é a educação obrigatória, de 9 anos, que deverá ser ampliada para 12, conforme defendemos.”
Opinião semelhante tem a presidenta da Federação Nacional das Escolas Particulares (Fenep), a física Amábile Pacios, para quem a proposta de Portela não deve prosperar. No seu entendimento, a sociedade brasileira defende a escola a ponto de defender e implementar políticas públicas no sentido de ampliar o tempo de permanência dos alunos em sala de aula e para trazer a criança mais cedo para a escola, além, é claro, da inclusão de todos.
Assim como Branca, ela acredita que a escola é essencial na formação do indivíduo. “Não consigo imaginar uma pessoa que decide educar o filho fora da escola, tirar dele o direito de ir à escola, de vivenciar tudo aquilo que acontece de mágico ali dentro. É coisa que a família não consegue substituir porque não tem a menor condição de substitui-la. A questão social, do relacionamento, o gerenciamento desses relacionamentos, as superações, o perdão, o emprestar, o compreender. A experiência desse ambiente social nenhuma família substitui”, reforça.
Vanguarda?
Amábile lembra que o mundo tende a caminhar para o estreitamento das relações entre família e escola, e não para a separação. “A escola, como um todo, tem muitos problemas, mas é o melhor espaço para que a criança se desenvolva, para se reconhecer como pessoa, interagir com outras, saber que existe o outro. Na família, onde todos são muito parecidos, praticamente ‘um só’, não se tem essa percepção que existe o outro, bem como seus direitos e responsabilidades.”
No entanto, para um dos coordenadores da Associação Nacional de Ensino Domiciliar (Aned), Ricardo Iene, socializar não é o principal papel da escola. “Ela oferece uma socialização definida na literatura como pobre, porque é restrita ao tempo do intervalo e a crianças da mesma idade e com condições socioeconômicas parecidas. O ideal seria que eles convivessem com pessoas de todas as idades, incluindo jovens, adultos e idosos. É isso que ajuda a criança a amadurecer.”
Pai de dois filhos, de 12 e 15 anos, e graduado em Jornalismo e Publicidade, Iene desistiu de uma carreira concursada há três anos para se dedicar integralmente a educação das crianças. Segundo diz, pesaram em sua escolha problemas que sua filha mais velha enfrentou na escola pública em que estudava, no município mineiro de Contagem.
“Os meninos tinham confiança de que estávamos fazendo o melhor para eles. Hoje peço um feedback e eles não têm interesse em voltar para a escola”, conta. “Eles têm amigos e saem com eles, como qualquer criança. Minha filha faz curso de fotografia e meu filho de violão. Além disso, frequentam parques, praças e se relacionam com os vizinhos.
Segundo Fábio Schebella, matricular os filhos em cursos extracurriculares é uma tendência entre os adeptos do homeschooling. “Os pais em geral são envolvidos com movimentos sociais e grupos religiosos. Além disso, matriculam as crianças em futebol, balé e outros cursos. O que nós vemos é que essas crianças se desenvolvem normalmente, não ficam atrasadas e tem uma socialização normal.”
“A gente é mãe e quer ver nossos filhos com amigos e eles têm muitos amiguinhos no condomínio, nos parques e na natação. Eles convivem também com adultos e pessoas mais velhas, que é importante. O Henrique é muito amigo do jardineiro do condomínio”, conta Melissa. “Também nos reunimos sempre com outras famílias que educam em casa. Já estamos estruturando o calendário do ano que vem e vamos nos reunir uma vez por semana.”
Defensor do direito dos país de escolherem onde e como educar seus filhos, André de Holanda ressalta o cuidado quanto ao julgamento dessas famílias, generalizando-as como individualistas, intolerantes ou sectárias. “Em minha pesquisa, entrevistei alunos educados em casa e o comportamento deles evidenciam que não foram apartadas do mundo e da vida, sem preparo para viver em sociedade”, afirma.
A polêmica, pelo jeito, ainda vai longe.