O Outro nos assombra: nosso filho, marido, esposa, namorado, aquele no caixa do supermercado, pai , mãe , irmão, amigo e alunos, dentre tantos diversos Outros espalhados em redor. Sucede que , qualquer um que não seja nós mesmos, é um mistério , pois não sabemos exatamente quem são, quais são as suas motivações mais profundas e seus desejos mais contidos. Mas essa perplexidade ou mesmo esse sobressalto fica em evidência quando esse Outro é muito diferente de nós.
Quando diante de um Outro, radicalmente diferente, a experiência do maravilhoso nos assalta . É sobre isso que Stephen Greenblatt nos conta em seu livro Possessões Maravilhosas tecendo uma análise dos mecanismos pelos quais a cultura ocidental lidou e lida com a alteridade.
O maravilhoso , sinônimo de surpresa , representa “tudo o que não pode ser conhecido, em que mal se pode acreditar” (Greenblatt, 1996:48) É o reconhecimento instintivo da diferença e,sobretudo, da diversidade cultural.
Greenblatt nos conta que o maravilhoso dominou o imaginário da era dos Descobrimentos e nos mostra o caminho que esse verbete percorreu desde o século XIV até o século XVII por meio dos relatos de viagem de Cristóvão Colombo , Montaigne, Mandeville, , John Milton e John Donne.
Diante de um Outro tão intensamente diferente , o europeu , a partir da viagem de Colombo, iniciou um século de intenso maravilhamento. A “Maravilha” , termo inúmeras vezes citada nos relatos de viagem da época, foi a figura central da resposta inicial dos europeus ao Novo Mundo. As maravilhas que viam e experimentavam modulavam o movimento de aproximação e distanciamento junto aos povos nativos. Mas a experiência do maravilhoso se sustenta por pouco tempo pois é preciso dar aquilo que não se conhece significação e sentido conhecidos, dizendo de outro modo, “o interesse dominante não é o conhecimento do outro, mas a ação sobre o outro”. (Greenblatt,1996:30)
É por essa razão que o interesse aqui é compreender o modo pelo qual nossos ancestrais lidaram com a alteridade e como esse lidar continua atuante nos dias atuais. Sigamos em frente …
Segundo Greenblatt, “os europeus usavam estruturas intelectuais e organizacionais convencionais , moldadas durante séculos de contatos indiretos com outras culturas, e que essas estruturas impediam em grande parte uma percepção clara da radical alteridade das terras e dos povos americanos.” (Greenblatt,1996: 78) Embora tivessem encontrado outras culturas distintas das suas , o desembarque no Caribe em 1492 era drasticamente diverso em função da duração extrema da viagem, a não-familiaridade total com a terra e o absoluto desconhecimento das culturas, das línguas , das organizações sócio-políticas e das crenças dos habitantes. Poderemos compreender melhor a relação entre europeus e povos do novo mundo por intermédio de um dos exemplos citados por Greenblatt, a obra de Jean Léry História de uma Viagem à Terra do Brasil , edição de 1558.
Jean Léry , francês e pastor huguenote , viveu entre os Tupinambás da baía do Rio de Janeiro vários meses em 1557. Nessa ocasião teve a oportunidade de presenciar diversos comportamentos sociais incluindo rituais. Descreve ele:
“ Enquanto tomávamos o desjejum, sem saber ainda o que eles tencionavam fazer, começamos a ouvir, na cabana dos homens ( situada a menos de dez metros de onde estávamos ), um murmúrio baixo como o de alguém tartamudeando suas preces. Nesse momento as mulheres (cerca de duzentas ) se ergueram, reuniram-se e puseram-se a ouvir atentamente. Os homens foram aos poucos erguendo a voz e passaram a cantar juntos, repetindo esta sílaba de exortação: He, he, he, he , aos gritos. Esse ritual durou mais de um quarto de hora, enquanto nós as observávamos completamente desconcertados. E elas não apenas uivavam como, saltando violentamente, sacudiam os seios e deitavam espuma pela boca. De fato, como os epiléticos, tombavam num desmaio mortal. Só me resta acreditar que o demônio lhes entrara no corpo e que elas sofreram uma ataque de loucura.”
Léry não via a alteridade, nem poderia ter visto, porque seus olhos viam através de sua cultura, portanto, dando significação aos comportamentos vistos. Para a sua cultura européia, tal comportamento significava bestialidade, loucura e possessão demoníaca. Acreditou que aquele episódio se tratava de espíritos imundos atormentando nativos que negam a Deus e o seu poder. O que Léry viu no Brasil era, para ele, a ativa e literal manifestação de Satã.
Outro exemplo de total inobservância da alteridade ,mesmo constatando a brutal diferença entre eles (europeus) e nativos, era a crença de que seria possível se comunicar com os nativos por intermédio de presentes e exibição de representações. Como se o significado de presente e as representações simbólicas (cruz e bandeira) fossem universalmente compreendidos e aceitos.
O Outro ,portanto, só existiu para o europeu , como um signo vazio, uma cifra. A categoria do Outro foi totalmente esvaziada. É possível ter maior clareza a este respeito por meio da narrativa de Colombo sobre a posse da terra. Colombo desembarcou , formalizou a posse e tomou a terra: declarou, testemunhou, registrou, atos públicos e oficiais – “o almirante fala como representante do rei e da rainha, e seu discurso deve ser ouvido e compreendido por testemunhas competentes e nomeadas , testemunhas que posteriormente podem ser convocadas para atestar o fato de que o desfraldamento da bandeira e as ‘declarações requeridas’ ocorreram conforme mencionado.” (Greenblatt,1996: 81) Tomou a terra para si e para a coroa que representava porque “os nativos não me contestaram”, “não fui contestado”. Segundo os conceitos medievais de lei natural, os territórios desabitados tornam-se propriedades do primeiro que vier a descobri-los. Poderíamos dizer que o formalismo de Colombo tenta tornar desabitadas as novas terras.
O movimento de maravilhamento inicial e depois atribuição de significação a partir do Mesmo não está circunscrito ao universo medieval, tempos de “descobrimentos”. Esse modo de lidar com a alteridade é ainda atual. Evidente que nos dias de hoje temos maior sensibilidade , melhor compreensão das diferenças , mas o movimento continua, embora mais atenuado.
Talvez eu não esteja certa se deveria dizer mais atenuado , como dito acima. Depois da Invasão do Iraque, para apenas citar um exemplo, é possível que tenha ocorrido um retrocesso em relação ao Outro. Como o ocidente pode entender o Oriente Médio a partir de seu Mesmo? Impossível. Mas, como não é nada fácil se despir de um olhar impregnado de verdades certeiras, resta então o esvaziamento do Outro: extermina, dilacera, sacode , rasga a cultura que não se conhece para implementar em seu lugar aquela conhecida e velha amiga. Assim se pensa na terra de Tio Sam.
Mas não é só lá naquelas bandas , onde o Texas ficou mais do que conhecido, que esse modo de pensar atua. Assim fosse… O maravilhamento diante do Outro seguido de pavor e repulsão , está bem pertinho de todos nós.
E aquele aluno piolhento sentado na carteira ao lado da menina cansada? “—Ele é piolhento, preguiçoso , sujo… coitado. Tento todos os dias falar da higiene , dos bons modos, do prazer dos estudos. Mas nada atinge o menino. Tento ser tolerante com aquela cabeça infestada de parasitas. Tento compreendê-lo , mas ali está ele sem ação. Não tem jeito , é assim e pronto.”
E o que falar daquele quase menino, quase bandido, quase aluno, no fundo da sala? Não tem pai, vive com a mãe na favela próximo da escola. Fala todo o tempo , sai da sala o tempo todo. Sabe-se lá o que faz na escola.
E a outra menina com lesão cerebral moderada que lhe permite locomoção vagarosa e coordenação motora instável sentada ,diante de mim , esperando ser alfabetizada?
São tantos exemplos que poderíamos citar a respeito de nossa incapacidade de olhar para esse Outro a partir dele próprio e não de nosso único e discreto umbigo. Nos é penoso apenas o exercício de entender o Outro . Como Cabral, como Colombo, atribuímos valores e intenções aos pequenos gestos de nossos alunos. Como Colombo e como Cabral nos sentimos superiores , detentores da verdade e do saber. Em nome da Educação reconhecemos a diferença não para entendê-la mas para torná-la igual , igual aquilo que para nós tem significação. Fazemos tal e qual aqueles nobres navegantes que, em nome da propriedade e da coroa, esvaziaram de sentido os povos das terras além mar.
Muito embora a lei federal 9394/96 e demais atos normativos da área educacional apontem para uma educação que garanta as diferenças, sejam elas culturais ou individuais, legislando inclusive a respeito das necessidades educacionais especiais, não conseguimos perceber as implicações envolvidas na problemática da alteridade.
Perceber a diferença, falar sobre as diferenças e se encantar por ela é uma coisa, outra, bem mais difícil e importante é poder lidar com ela.
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Greenblatt, S. Possessões Maravilhosas: o deslumbramento do novo mundo. São Paulo, Edusp: 1996.
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Olá Sonia pelo seu site tomei coragem para lutar pela minha filha. Pedi reconsideração e foi negada entrei hoje com recurso pois a escola entrou em recesso após entregar o boletim.
Vou lutar pois minha filha foi reprovada em duas matérias por 5 décimos. A escola foi negligente com quadro de professores, planejamento de aulas, planejamento de recuperação paralela e nunca me chamaram para uma reunião. São muitos acontecimentos (até malucos) por isso vou até o fim.
Gostaria de saber se são 5 dias que a escola tem pra apresentar meu recurso? Obrigada suas palavras foram muito importantes para mim. Estou desesperada. Bjs Monica
Olá Monica,
Faz muito bem de lutar sim… se não lutarmos as coisas não mudam… somos muitos!!
Se vc é do Estado de São Paulo e está seguindo a Deliberação CEE n.127/2014 sim.. a escola terá 5 dias para encaminhar o seu Recurso a Diretoria de Ensino.
Entre em contato com a Diretoria de Ensino e pergunte se a escola encaminhou o seu Recurso… se ela não fez isso porque estava em recesso escolar daí o prazo estava suspenso em função do artigo 2o e do parágrafo 4o mas se a Diretoria disse o contrário entre com decurso de prazo.
Abraços e parabéns
olá professora,
gostaria de tomar conhecimento de sua opiniao.
estamos no final do ano e aqui na minhaescola temos um grande numero de alunos do 4 e 5 ano ( fundamental)que nao sabem ler.os professores dizem que é agora o momento de reprova-los , ja que nao pode no primeiro ciclo.
ex: turmas com 17 alunos e apenas 5 passarão.
Alessandro, nem me conta isso que eu fico para morrer!!!
Como assim? E o que foi feito com essas crianças no 1o ano, 2o ano, 3o ano, 4o ano.. eu não alcanço…
71% de reprovados significa o que? Que há problema no ensino e não na aprendizagem…
Muito triste isso… a solução é a reprovação…
Qual é o projeto de língua portuguesa adotado?
Ai eu tenho um projeto de escrita e leitura na perspectiva vygotskyana muito bacana.. eu aplicava como professora e depois acabei ministrando em curso de formação de professores… é um trabalho muito legal… os avanços são consideráveis…
Eu acredito nas crianças e acredito em um ensino comprometido..
71% de reprovação ..nem tenho palavras ..
O problema é reprovar mas qual será a proposta de trabalho para promover avanços significativos e rápidos porque vai reprovar todos os anos?
Triste né? Abraços!!