Proponho lembrarmos, mesmo que de forma breve, a origem da visão de mundo mecanicista/newtoniana e compreender que ela sustenta a prática da escola tradicional que infelizmente é o modelo que mais encontramos nos dias de hoje , o que não deixa de ser um paradoxo já que a sociedade busca novas formas de viver como, por exemplo, a permacultura.
No século XVII, René Descartes, brilhante matemático, considerado fundador da filosofia moderna, resolveu construir uma ciência completa da natureza cujos princípios fundamentais dispensariam a demonstração. Ele tinha convicção no conhecimento científico. Para ele “toda ciência é conhecimento certo e evidente”. A crença na certeza do conhecimento científico está na própria base da filosofia cartesiana e na visão de mundo dela derivada, o que levou ao cientificismo típico da cultura ocidental. O método científico virou verdade, o que significa dizer, considerado o único meio válido de compreensão do universo. Para ilustrar, assista a partes do filme Ponto de Mutação – Modelo de Cosmo e Ponto de Mutação – Pensamento Mecanicista .
Descartes acreditava que a chave para a compreensão do universo era a sua estrutura matemática; para ele, a ciência era sinônimo de matemática. Mas como construir uma ciência natural completa e exata? Por meio de um método. Um método de raciocínio (daí o racionalismo) que Descartes divulgou em seu mais famoso livro Discurso do Método para bem conduzir a Razão e procurar a verdade nas ciências. O objetivo era o de apontar o caminho para se chegar à verdade científica.
O método de Descartes é analítico, o que consiste em decompor pensamentos e problemas em suas partes componentes e em dispô-las em uma ordem lógica. Esse método analítico de raciocínio é a maior contribuição de Descartes ao pensamento científico moderno e provou ser extremamente útil no desenvolvimento de teorias científicas e na concretização de complexos projetos tecnológicos. O problema é que ele também levou à fragmentação característica do nosso pensamento em geral e das nossas disciplinas acadêmicas e,sobretudo, levou-nos a acreditar que todos os aspectos dos fenômenos complexos podem ser compreendidos se reduzidos às suas partes constituintes.
Outra conseqüência do cartesiasismo foi a devastadora destruição do meio ambiente, percebida de forma aguda nos dias atuais. Isso foi possível porque a natureza era entendida como um sistema mecânico – uma máquina – que deveria ser dominada e controlada pela ciência.
Mas Descartes não estava sozinho nessa empreitada, ao contrário, apesar de seu grande esforço, ele não pode fazer mais do que esboçar as linhas gerais de sua teoria dos fenômenos naturais. Quem completou o seu sonho foi Isaac Newton. Newton desenvolveu uma completa formulação matemática da concepção mecanicista da natureza realizando uma síntese das obras de Copérnico e Kepler, Bacon, Galileu e Descartes.
A física newtoniana forneceu um sólido alicerce do pensamento científico até boa parte do século XX. Na obra Os princípios matemáticos de filosofia natural compreendem um sistema de definições, proposições e provas que os cientistas consideraram a descrição correta da natureza por mais de duzentos anos.
A teoria newtoniana foi capaz de explicar o movimento dos planetas, da lua e cometas nos mínimos detalhes, assim como o fluxo das marés e vários outros fenômenos relacionados com a gravidade. Com o sucesso e aceitação da visão mecanicista de mundo, a física tornou-se a base de todas as ciências.
Os princípios da mecânica newtoniana foram aplicadas inclusive nas ciências da sociedade humana. Locke desenvolveu sua teoria da natureza humana e depois aplicou-a aos fenômenos sociais. Tal como os átomos de um gás estabelecem um estado de equilíbrio, também os indivíduos humanos se estabilizariam numa sociedade num “estado de natureza”. Assim, a função do governo não seria impor suas leis às pessoas, mas descobrir e fazer valer as leis naturais que existiam antes de qualquer governo ter sido formado. Para Locke essas leis naturais incluíam a liberdade e a igualdade entre todos os indivíduos assim como o direito à propriedade, que representava os frutos do trabalho de cada um.
Essas idéias tornaram-se a base para o sistema de valores do Iluminismo e tiveram uma forte influência sobre o desenvolvimento do moderno pensamento econômico e político. Individualismo, direito de propriedade, mercados livres e governo representativo são ideais que podem ser atribuídos a Locke e que sustenta a escola tradicional, e tradicional aqui engloba também aquelas que se dizem construtivistas.
Capra nos conta em seu livro o Ponto de Mutação que
“no final do século XIX, a mecânica newtoniana tinha perdido seu papel de teoria fundamental dos fenômenos naturais. Os conceitos da eletrodinâmica de Maxwell e da teoria da evolução de Darwin superavam claramente o modelo newtoniano e indicavam que o universo era muitíssimo mais complexo do que Descartes e Newton haviam imaginado. Não obstante, ainda se acreditava que as idéias básicas subjacentes à física newtoniana, embora insuficientes para explicar todos os fenômenos naturais, eram corretas. As primeiras décadas do século XX, mudaram radicalmente essa situação. Duas descobertas no campo da física, culminando na teoria da relatividade e na teoria quântica, pulverizaram todos os principais conceitos de visão de mundo cartesiana e da mecânica newtoniana. A noção de espaço e tempo absolutos, as partículas sólidas elementares, a substância material fundamental, a natureza estritamente causal dos fenômenos físicos e a descrição objetiva da natureza – nenhum desses conceitos pôde ser estendido aos novos domínios em que a física agora penetrava.” Capra,2001, pg.69
O início da física moderna foi marcada por Albert Einstein. Ele introduziu duas tendências revolucionárias no pensamento científico. Uma foi a teoria especial da relatividade; a outra, um novo modo de considerar a radiação eletromagnética, que se tornaria característico da teoria quântica, a teoria dos fenômenos atômicos. Mas o surpreendente foram as conclusões que chegaram os cientistas a partir dessa teoria:
“a descoberta do aspecto dual da matéria e do papel fundamental da probabilidade demoliu a noção clássica de objetos sólidos. A nível subatômico, os objetos materiais sólidos da física clássica dissolvem-se em padrões ondulatórios de probabilidades. Esse padrões, além disso, não representam probabilidades de coisas, mas probabilidades de interconexões. (…) Portanto, as partículas subatômicas não são ‘coisas’ mas interconexões entre ‘coisas’, e essas ‘coisas’, por sua vez, são interconexões entre outras ‘coisas’, e assim por diante.” Capra,2001,pg.75
O conhecimento,acima descrito, nos permite analisar a nossa própria vida cotidiana. Embora possa ser a das mais comuns, é uma vida em relação entre vidas. Só fazemos sentido em relação a alguém, a uma situação, a um contexto. Sozinhos não somos coisa nenhuma, portanto, não existimos. Nesse sentido, a vida individual é uma particularidade da vida social, e mesmo assim, continuará sendo sempre uma vida social.
Poderíamos dizer que a vida social é uma teia dinâmica de eventos inter-relacionados. Nenhuma das vidas individuais de qualquer parte dessa teia é fundamental; todas elas decorrem da vida individual das outras partes do todo, e a coerência total de suas inter-relações determina a estrutura da teia.
Muito antes, Karl Marx em seus Manuscritos Econômicos-Filosóficos disse, de outra forma, a mesma coisa:
“o indivíduo é o ser social. A exteriorização da sua vida – ainda que não apareça na forma imediata de uma exteriorização de vida coletiva, cumprida em união e ao mesmo tempo com outros – é, pois, uma exteriorização e confirmação da vida social. A vida individual e a vida genérica do homem não são distintas, por mais que, necessariamente, o modo de existência da vida individual seja um modo mais particular ou mais geral da vida genérica ,ou quanto mais a vida genérica seja uma vida individual mais particular ou geral.” Marx, 1974,pg.76
É preciso compreender que interconexões, multiplicidade, complexidade, teia dinâmica de relações e probabilidades , são conceitos que começam a compor discussões, pesquisas, colóquios de diversas áreas do conhecimento. Um novo modo de organizar o saber está sendo engendrado, daí a boa vinda para a pedagogia ecológica.
Assim como a percepção de mundo da Idade Média deu lugar a da Idade Clássica e esta cedeu passagem para a Modernidade – como nos contou Foucault em seu livro As palavras e as coisas – estamos diante de algo novo, ainda embrionário, que corrói nossas certezas a cada novo dia.
Diante de uma prática de ensino que valoriza:
- Um conhecimento dividido por disciplinas estanques;
- Um conteúdo dividido segundo sua complexidade: primeiro o mais simples, depois o mais complexo;
- Em geral, não contemplando estudos oriundos de pesquisas mais avançadas.
Existe uma questão: como a escola tradicional contribuirá com a formação de pessoas que vivem e viverão, cada vez mais, imersas nesse mundo complexo, sem certezas e determinismos?
Este é um grande desafio a ser solucionado pela pedagogia ecológica tendo em vista uma prática de ensino por meio de projetos trans/interdisciplinares.
Bibliografia:
Capra, F. O Ponto de Mutação: a ciência, a sociedade e a cultura
emergente. 22a edição.São Paulo: Cultrix, 2001.
Foucault,M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 6a edição. São Paulo: Martins Fontes,1995.
Marx,K. Manuscritos Econômicos e Filosóficos.In: Os Pensadores. São Paulo: Abril,1974.
Excelente texto, aborda o desenvolvimento da sociedade com bases em princípios filosóficos, estabelecendo os mecanismos do comportamento humano em todas as áreas.
Novas descobertas indicam uma outra transformação da humanidade, agora baseada não na individualidade advinda do modelo newton – cartesiano. Esse novo modelo recoloca o ser humano como um ser interdependente entre si e em relação à natureza.
A educação terá um papel fundamental na conscientização deste novo modelo e na sua sedimentação na sociedade.
Sobre este tema indico o Post “http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/como-a-ciencia-influencia-o-modo-de-pensar-da-sociedade”
Muito boa dica a do post! Eu perdi o debate naquela ocasião, muito bom por sinal, vou ler com maior atenção ainda esta noite. Eu tenho pensado na possibilidade de uma construção de uma alternativa para a escola que está aí porque esta efetivamente não mais atende as necessidades da sociedade ou então acabar com ela de vez ahahahaha! nos moldes propostos por Ivan Illich em seu ensaio Sociedade sem Escola. Embora falar de acabar com a escola é ainda uma heresia!! Entendo o motivo, mas também sou bem adepta ao o que Illich disse em seu primeiro capítulo “Muitos estudantes, especialmente os mais pobres, percebem intutitivamente o que a escola faz por eles. Ela os escolariza para confundir processo com substância. Alcançado isto, uma nova lógica entra em jogo: quanto mais longa a escolaridade, melhores os resultados; ou, então, a graduação leva ao sucesso. O aluno é, desse modo, “escolarizado” a confundir ensino com aprendizagem, obtenção de graus com educação, diploma com competência, fluência no falar com capacidade de dizer algo novo. Sua imaginação é “escolarizada” a aceitar serviço em vez de valor.” (ILLICH,1988,p.21)