Este artigo foi submetido a avaliação enquanto trabalho final de curso de Direito na Universidade de São Francisco, no ano de 2022, obtendo conceito dez com louvor, razão pela qual eu, Sônia Aranha, autora, compartilho com os meus leitores. Boa Leitura!
A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO DO ALUNO DA EDUCAÇÃO BÁSICA
SÔNIA MARIA ARANHA RODRIGUES DE ANDRADE
RESUMO
A proposta deste artigo científico é analisar o motivo pelo qual algumas instituições escolares da Educação Básica descumprem os princípios constitucionais da ampla defesa, do contraditório, do devido processo legal e da dignidade da pessoa humana que constam do art.5° da Constituição Federal de modo a violar o direito do aluno e, consequentemente, gerando o fenômeno da judicialização das relações escolares e, em especial, a judicialização do direito do aluno. Pretende-se ainda apresentar alguns exemplos de situações em sala de aula que ilustram as violações de direitos dos alunos que acabaram nos tribunais e algumas decisões que envolveram o direito do aluno no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
Palavras-chave: judicialização escolar; direito do aluno; educação básica.
INTRODUÇÃO
Um grande obstáculo que se verifica em muitas instituições escolares diz respeito ao cumprir e fazer cumprir os quatro princípios constitucionais expressos no Art. 5⁰ da Constituição Federa: dignidade humana, ampla defesa, contraditório e o devido processo legal. A inobservância no cumprimento destes princípios constitucionais violam o direito do aluno, consequentemente, muitos dos responsáveis legais destes alunos buscam socorro junto ao Poder Judiciário e este, ao agir, interfere, gerando o fenômeno da judicialização das relações escolares, sobretudo, aquelas que envolvem diretamente o aluno.
Para tentar uma aproximação do complexo fenômeno da judicialização das relações escolares, neste caso circunscrito ao direito do aluno, optou-se pela divisão do artigo em quatro tópicos, a saber:
1) A delimitação dos conceitos: judicialização e direito do aluno, é uma tentativa de compreender o conceito de judicialização a partir do surgimento da intervenção do Poder Judiciário em práticas sociais notadamente restritas ao âmbito da vida privada e,.consequentemente, do aparecimento do aluno enquanto um novo ator judicial que passa a ter voz a partir da Constituição Federal de 1988 e das mudanças sociais que ocorrem no século XXI;
2) O direito do aluno sob o prisma da Constituição que objetiva dar conhecimento de que o aluno tem direitos e que estes estão garantidos na Constituição Federal;
3) Do que se trata a judicialização das relações escolares visando apresentar o fenômeno da judicialização presente nas escolas de Educação Básica ilustrado em dois subitens com exemplos de situações que desembocaram nos Tribunais:
3.1) Violação do princípio constitucional da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal aponta o caso discutido no tribunal do aluno do 9o ano do Ensino Fundamental, do município de São Bernardo do Campo, que sofreu transferência compulsória sem que lhe fossem garantidos a ampla defesa, o contraditório e o devido processo legal;
3.2) Violação do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, também levado à Justiça, referente ao caso de aluna do 1° ano do Ensino Fundamental, na época com seis anos de idade,do município de São Paulo, que sofreu constrangimento ao ser impedida de ir ao banheiro, vindo a urinar nas calças, permanecendo com sua peça íntima molhada até o final do horário escolar;
4) Decisões que envolvem o direito do aluno no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que pretende, mesmo que de modo breve, apresentar a crescente demanda junto ao Poder Judiciário, no período de 1991 a 2008, visando garantir o direito do aluno.
1- A DELIMITAÇÃO DOS CONCEITOS: JUDICIALIZAÇÃO E DIREITO DO ALUNO
Com a expansão da instituição do Estado do bem-estar social surgiu o fenômeno da judicialização significando a intervenção do Poder Judiciário em práticas sociais, incluindo aquelas reservadas para a vida privada, dentre elas as práticas escolares. Este fenômeno, o da judicialização, diz respeito a uma grande transformação que está ocorrendo nas práticas jurídicas e sociais, com o advento de novos atores judiciais, além de novos direitos individuais e coletivos e de gênero, incluindo, meio ambiente, consumidor, relações de trabalho e escolares. (WACHELESKI,2007, p.118)
De modo que a força reguladora do direito tem se apropriado dos espaços notadamente privados do âmbito familiar, da educação, dentre outras, configurando áreas propriamente sociais. Este fenômeno da judicialização se deu, segundo Wacheleski (2007, p. 119), por intermédio de duas frentes distintas, embora conexas: a ascensão de novos direitos decorrentes do Estado de bem-estar social, como também, do surgimento de novos atores. Nestas duas formas admite-se maior atuação do Poder Judiciário em temas que anteriormente atuava somente por exceção e, por outro lado, a incompetência democrática dos Poderes Executivo e Legislativo em oferecer respostas seguras às demandas sociais por justiça, o que exige a implementação de direitos assegurados formalmente na Constituição Federal de 1988.
É neste contexto que surge um novo ator que interessa a este artigo, trata-se do aluno da Educação Básica que até então não tinha voz, mas que a partir da Constituição Federal de 1988 e, sobretudo, nas duas primeiras décadas do século XXI, clama por garantir seus direitos que abrangem, desde o acesso e a permanência na escola, conforme prescreve o art.206, inciso I da Constituição Federal[1], até o de contestar critérios avaliativos em instâncias escolares superiores, conforme art.53, III, do Estatuto da Criança e do Adolescente[2]. Segundo Konzen (1999, p. 10), o Direito à Educação não mais se restringe ao direito à vaga, mas trata-se, a partir também do Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990, do direito ao ingresso, à permanência e ao sucesso escolar.
Muito embora seja possível destacarmos conteúdo material do direito do aluno na Lei n°.9394/96 que estabelece as diretrizes de base da educação nacional, ele está detalhado no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a saber: a) universalidade do acesso e da permanência; b) gratuidade e obrigatoriedade do ensino fundamental; c) atendimento especializado aos portadores de deficiência; d) atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos; e) atendimento no ensino fundamental através de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde; f) direito de ser respeitado pelos educadores; g) direito de organização e participação em entidades estudantis; h) acesso à escola próxima da residência; i) acesso à escola próxima da residência. (KONZEN, 1999, p. 10)
Ademais, o estudo da exigibilidade do Direito à Educação, para além da Constituição Federal e das respectivas constituições estaduais e municipais (leis orgânicas dos Municípios), importa, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA – (Lei Federal n° 8.069, de 13 de julho de 1990), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB – (Lei Federal n° 9.394 de 20 de dezembro de 1996), a Lei da Ação Civil Pública (Lei Federal n° 7.347, de 24 de julho de 1985), a Lei da Probidade Administrativa (Lei Federal n° 8.429. de 2 de junho de 1992) e as leis de responsabilidade (Lei Federal n° 1.079. de 10 de abril de 1950 e Decreto-Lei n° 201, de 27 de fevereiro de 1967), sem contar com as normas procedimentais do Código de Processo Civil, do Mandado de Segurança e da Ação Popular (KONZEN, 1999, p 10). Complementa Silveira (2008, p.542) que a nossa Carta Magna explicitou os direitos educacionais e para protegê-los, criou e aprimorou instrumentos processuais, tais como: o mandado de segurança, o mandado de injunção e a ação civil pública, que podem ser utilizados para exigir o cumprimento do direito à educação.
Deste modo é possível compreender que havendo inobservância do direito do aluno na escola, seus responsáveis legais buscam amparo junto ao Judiciário e este ao agir, gera o fenômeno da judicialização, porque será o Judiciário com suas normas que definirá as diretrizes educacionais em detrimento das diretrizes pedagógicas.
2-DIREITO DO ALUNO SOB O PRISMA DA CONSTITUIÇÃO
Um marco significativo no encaminhamento dos problemas relativos à educação brasileira diz respeito à Constituição Federal de 1988, porque ela estabeleceu diretrizes, princípios e normas que destacam a importância que o tema merece. Um dos mais significativos foi o reconhecimento da educação enquanto direito social fundamental, possibilitando que o Estado, a família, os educadores e a sociedade fossem responsáveis por sua concretização. (CURY e FERREIRA, 2009, p. 33)
De modo que a Constituição Federal de 1988 trouxe um novo caráter para a tarefa educativa: o direito social e o direito público subjetivo. Isso representou extraordinário avanço, porque o constituinte, além de conferir posição privilegiada à educação, normatizou-a como direito fundamental e público, apresentando meios para a sua concretização.
Nas Constituições anteriores, no entanto, afirma KONZEN (1999, p. 71), a educação, embora fosse afirmada como direito para todos, não possuía qualquer instrumento de exigibilidade, porque não havia enfoque jurídico em qualquer de seus aspectos, exceto a obrigatoriedade da matrícula. Com o efetivo reconhecimento da educação como direito social e direito público subjetivo, trazidos pela Constituição Federal de 1988 e da judicialização destes direitos (saúde, educação, proteção à maternidade e à infância, trabalho, segurança, lazer e moradia), cada vez mais o Poder Judiciário está sendo chamado a dirimir questões das mais variadas e que antes não eram levadas ao seu conhecimento. De modo que durante a última década do século XX e a primeira do século XXI, de forma inédita e sem precedente na história do Direito, estabeleceu-se uma relação direta entre a justiça e a educação e, para além da responsabilidade civil da escola e dos educadores, surgiram, neste ínterim, muitas outras demandas, envolvendo relações entre alunos, educadores, família e escola. (CURY e FERREIRA, 2009, p 34)
Nos últimos anos com o advento da internet e, sobretudo, a publicação da Lei n°.12.527 de 2011 que regula o acesso a informação dos procedimentos realizados pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, garantindo o previsto no inciso XXXIII do art.5º, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal foi possível que se fizesse conhecer, sem delongas, as Leis, as Deliberações, as Resoluções, os Pareceres publicados pelas Secretarias de Educação, Conselhos de Educação Estaduais e ou Conselho Nacional de Educação, além do acesso a Constituição Federal e a divulgação e disseminação dos direitos educacionais por intermédio de uma série de blogs especializados. Isso fez com que os pais dos alunos e os próprios alunos do Ensino Fundamental e Médio, objeto deste artigo, buscassem seus direitos ao sofrerem algum tipo de restrição.
Dentre o conteúdo material do direito do aluno mencionado anteriormente, pretende-se neste artigo dar maior destaque para o direito do aluno a ser respeitado pelos educadores[3] que atuam dentro da instituição escolar, sobretudo, observando os princípios constitucionais da ampla defesa, do contraditório, do devido processo legal e da dignidade da pessoa humana no cotidiano da vida escolar. Neste sentido, o que se pressupõe é que o ato pedagógico que ocorre em ambiente escolar, em especial, na sala de aula por ser lugar apropriado da construção da cidadania, deva constituir-se de um fluxo contínuo do exercitar e do aprender os princípios constitucionais democráticos. No entanto, quanto mais se aprende do que se trata o princípio do contraditório e da ampla defesa, por exemplo, mais os alunos verificam que em boa medida o “cala a boca” ainda é praticado enquanto a inobservância de ouvir a versão dos fatos de todos os envolvidos em um determinado conflito tem sido mais regra do que exceção.
Conforme Cury (2007, p.493), a escola se distingue por oferecer o ensino como um bem público, afinal trata-se de uma instituição de serviço público, de modo que não se confunde com uma empresa de produção ou uma loja de departamentos. De tal monta deve primar por uma gestão democrática com abertura ao diálogo e à busca de caminhos que possam garantir a democratização da escola brasileira de acordo com o que preconiza o art.205[4] da Constituição Federal.
3 – DO QUE SE TRATA A JUDICIALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES ESCOLARES
Antes de tratar deste tópico propriamente dito, vale discorrer, mesmo que de forma breve, sobre o conceito de escola que este artigo está a tratar: o que é a escola, isto é, do que se trata a instituição responsável pela educação formal da sociedade brasileira? Na companhia de Moacir Gadotti (200, p.10) que, por sua vez, inspirado em Paulo Freire, possui uma boa definição: a escola é um lugar especial de esperança e de luta. Mas equivoca-se aquele que considera a escola como apenas um local físico. A escola se define por intermédio das relações sociais que desenvolve e, ao mesmo tempo, diz respeito a manter e a transformar a sociedade na qual está inserida. De modo que a escola não é estática, ao contrário, se transforma conforme o momento histórico e neste atual momento está a vivenciar o fenômeno da judicialização, tratando-se, portanto, da intervenção do Poder Judiciário nas relações sociais estabelecidas em seu interior.
Ora, o Poder Judiciário tem ocupado um espaço de ação que o universo educacional não tem dado conta de resolver, muito embora seja o seu dever. É deste modo que a judicialização chegou ao chão da escola, intervindo nas relações de alunos versus professores, alunos versus procedimentos avaliativos ou mesmo de alunos versus procedimentos disciplinares, dentre outros. Para Chrispino & Chrispino (2008. p 11) os educadores não foram formados para lidar com essas novas demandas de obrigações, quando muito, na formação acadêmica se depararam com alguma disciplina sobre a LDBN (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional). Isso significa dizer que quando os educadores não atuam de acordo com o novo contexto social, enfrentam de modo crescente as batalhas judiciais que envolvem diferentes temas, dentre eles, a violação dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, do devido processo legal e da dignidade da pessoa humana que começam a surgir com maior força nos debates dos Tribunais, razão pela qual abaixo seguem alguns exemplos:
3.1 VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL
Por indisciplina, aluno, menor de idade, matriculado no 9º ano do Ensino Fundamental, no ano letivo de 2019 de escola particular do município de São Bernardo do Campo, sofreu transferência compulsória, por ato do diretor da instituição de ensino sem que fossem lhe dado o direito da ampla defesa e do contraditório e, ao mesmo tempo, que fosse instaurado o devido processo legal, chamando os pais para serem ouvidos no Conselho Disciplinar visando poder efetivar a defesa conforme determina o Art.14, II da Lei 9394/96 (Lei de Diretrizes de Base da Educação Nacional) que diz: “II – participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes.”
O aluno, representado por seus pais, impetrou mandado de segurança, pedindo: 1) liminarmente a suspensão do ato praticado, permitindo-se ao menor voltar às aulas; 2) que a escola apresentasse plano pedagógico de compensação de ausência para compensar as aulas perdidas e, por fim, 3) declaração da nulidade do ato. O Ministério Público manifestou-se favorável à concessão da ordem, a liminar foi concedida e o aluno conduzido de volta às aulas mediante rematrícula e com reposição de aulas, trabalhos e avaliações. A escola apelou, mas o Tribunal Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) entendeu que mesmo com um histórico escolar de aluno indisciplinado e com os diversos comunicados feito aos pais sem obter êxito, houve violação do princípio constitucional da ampla defesa e do contraditório, portanto, o TJSP não acolheu a apelação[5].
Outro caso a relatar enquanto exemplo é a suspensão de aluno matriculado em escola pública municipal, do município de Miguelópolis, no Estado de São Paulo, realizado sem a observância do princípio constitucional da ampla defesa e do contraditório. O TJSP entendeu que a direção escolar não só pode, como deve, aplicar sanções disciplinares para coibir atos de indisciplina, porém, só pode fazê-lo após ter garantido o direito constitucional ao contraditório e à ampla defesa[6].
Em ambos os casos é possível encontrar amparo no art.5º, I, da Constituição Federal de 1988 que confere a todos, igualdade em direitos e deveres individuais e coletivos, e por certo, os estendeu a crianças e adolescentes. Por outro lado, o art.3º do ECA diz que a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral assegurando-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social em condições de liberdade e de dignidade. Diante disso, Digiácomo & Digiácomo (2020, p.4 ) apontam que este último dispositivo imprimiu reflexo não apenas no direito material, mas também no processual não sendo, portanto, admissível que adolescentes, acusados de praticar atos infracionais, deixem de ter fielmente respeitadas todas as garantias processuais asseguradas aos acusados em geral, seja qual for sua idade. Além disso, afirmam que é obrigatória, nestes casos, a oitiva sempre que necessitar a salvaguarda de seus direitos seja por parte dos pais, escolas ou Estado.
3.2 VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Aluna de seis anos de idade na época da denúncia, matriculada em escola particular do município de São de Paulo, não recebeu prestação de serviço adequada e foi colocada em castigo moderado consistente em permanecer de pé separada da menor com quem brincava no intervalo vindo a urinar nas calças por não ter sido atendido o seu pedido de ir ao banheiro, além de ter permanecido com peças íntimas molhadas de urina até o final do horário de aula às 19h. Decisão judicial:
(…) Nesse contexto, tem-se que a menor, então com seis anos de idade, foi submetida a constrangimento passível de reparação pelo direito, advindo-lhe danos morais. Tanto isso é verdade que o evento não foi apagado de sua memória mesmo depois de passados mais de dois anos de sua ocorrência.Estão, portanto, presentes, os pressupostos da responsabilidade civil, ensejando o dever de indenizar. (…) ( TJSP, nº.0044103-91.2011.8.26.0007, Apelação Cível / Estabelecimentos de Ensino, Desembargadora Sandra Gualhardo Esteves, Comarca de São Paulo, 11/05/2016)
O TJSP acolheu a sentença e manteve a decisão, negando provimento da apelação, decisão que encontra respaldado no art.15 do ECA que diz a criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis.
Para Digiácomo & Digiácomo (2020, p.28) o Art.15 do ECA se relaciona com os arts. 1°, inciso III e 5º, caput e inciso I, da Constituição Federal, com também com o art. 1º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, adotada e proclamada pela Resolução nº 217-A, III, da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. E ressaltam que o princípio da dignidade da pessoa humana é universalmente consagrado e, independente da idade, é inerente a todos ser humano, de modo que contido neste artigo está à necessidade de enfatizar que crianças e adolescentes são eles próprios, titulares de direitos.
Tendo em vista os exemplos analisados da intervenção do Poder Judiciário nas relações escolares é preciso esclarecer que tanto a Constituição Federal, bem como, o ECA ou a LDBN não pretendem atentar contra o princípio da autoridade do sistema educacional, no entanto, a previsão legal está a enunciar que o aluno deve ser tratado com dignidade e respeito, sendo vedado e, estabelecendo como figura criminosa, submeter a criança ou adolescente sob sua guarda e vigilância a vexame ou a constrangimento (MAIOR NETO,2000, s/p)
- DECISÕES QUE ENVOLVEM O DIREITO DO ALUNO NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
A pesquisa intitulada Atuação do Tribunal de Justiça de São Paulo com relação ao direito de crianças e adolescentes à educação (2011), permite desvendar, mesmo que de modo geral, um panorama, sobre a judicialização. Apesar de não tratar exatamente do foco deste artigo é relevante apresentar o trabalho de Silveira (2011) que coletou 483 decisões do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no período de 1991 a 2008, baseando-se nas principais demandas e questionamentos discutidos nos processos, e classificadas em sete amplas categorias: acesso à educação básica; permanência; responsabilidade estatal; poder de regulação estatal; decisões administrativas e políticas; gestão dos recursos públicos; deveres dos pais.
Percebe-se que no período estudado por Silveira (2011) houve uma crescente busca pela efetivação do direito à educação, como demonstra o Quadro 1 e Quadro 2:
Silveira (2011) concluiu que a exigibilidade ao direito à educação no período analisado cresceu, usando o Judiciário para busca de resoluções de conflitos na área educacional porque o Estatuto da Criança e do Adolescente ampliou a atuação do Ministério Público visando garantir os direitos individuais indisponíveis, difusos e coletivos referentes à criança e ao adolescente, e os diferentes instrumentos processuais existentes (ação civil pública, mandado de segurança, ação coletiva).
Não há fôlego neste artigo para se debruçar sobre todas as decisões do TJSP que envolvem o direito do aluno por intermédio da violação dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, do devido processo legal e da dignidade humana, mas com os dados coletados acima apresentados, Silveira consegue demonstrar o fenômeno da judicialização, isto é, a intervenção do Poder Judiciário na esfera do Poder Administrativo e em curva ascendente, sobretudo, nos primeiros anos do século XXI, como ilustra o Quadro 2.
No estudo delimitado por este artigo apurou-se que no período de 2019 a 2022 ocorreram mais de cinquenta e três decisões a respeito de fornecimento de professor de apoio para alunos com deficiência que envolve o princípio da dignidade da pessoa humana, porque alunos surdos, cegos, hiperativos ou com síndrome de down, dentre outros alunos com diferentes necessidades educacionais especiais, para atingirem igual desempenho dos demais alunos precisam contar com o apoio de professor especialista ou auxiliar dentro da sala de aula, mas o poder público nas escolas públicas e a maioria dos mantenedores de escolas privadas não oferecem este tipo de apoio pedagógico.
Em menor número, há decisões sobre o fornecimento de transporte escolar, casos de danos morais em função do bullying, reconsideração de reprovação escolar, vagas em escolas mais próximas da residência do aluno, aceleração de série, dentre muitos outros assuntos que envolvem o direito do aluno, sempre em uma demanda crescente.
5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Percebe-se que quando as instituições escolares não garantem o direito dos alunos que constam na legislação do ensino, no Estatuto da Criança e do Adolescente ou na Constituição Federal, são os Tribunais que cumprem este papel e, conforme Santos (2007,pg.84): “sem direitos de cidadania efetivos a democracia é uma ditadura mal disfarçada”.
De modo que é preciso compreender que as instituições de ensino de Educação Básica não são ilhas sociais isoladas com suas próprias regras. As regras escolares expressas nos Regimentos Escolares são submetidas às regras prescritas na Constituição Federal e, obviamente, devem garantir, obrigatoriamente, aos princípios constitucionais da ampla defesa, do contraditório, do devido processo legal e da dignidade da pessoa humana.
Sem que isso ocorra, os responsáveis legais dos alunos, cientes que estão de seus direitos, amplamente divulgados em função do advento das novas tecnologias e da Lei de Acesso à Informação (Lei n°.12.527/2011), buscam cada vez mais os tribunais, visando mediar os conflitos que envolvem assuntos que poderiam ser resolvidos no âmbito escolar ou mesmo junto ao Poder Executivo, neste caso, representado pelas Secretarias de Educação e seus respectivos Conselhos de Educação, sem que houvesse necessidade da intervenção do Poder Judiciário.
Para que ocorra uma mudança neste estado de coisas será preciso promover um amplo debate envolvendo instituições escolares de Educação Básica, entre públicas e privadas, o Poder Judiciário, bem como o Poder Executivo, além da sociedade civil, representada pelos alunos, seus pais e educadores, objetivando um trabalho integrado com vistas a garantir não só o direito dos alunos, mas, sobretudo, a consolidação da democracia brasileira.
REFERÊNCIAS
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BRASIL. Lei n.12.527 18 de novembro de 2011 que regula o acesso a informação dos procedimentos realizados pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm> Acesso: 20/03/2022.
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO – TJSP. Apelação Cível nº.0044103-91.2011.8.26.0007,Desembargadora Relatora Sandra Gualhardo Esteves, Data de julgamento, 11/05/201.
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NOTAS
[1] Art. 206, I, CF/88: I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola.
[2] Art. 53, III, ECA: III – direito de contestar critérios avaliativos em instâncias escolares superiores.
[3] Educadores são todos aqueles que lidam com o aluno no interior da instituição escolar: professores, orientadores educacionais, direção e coordenação pedagógica, auxiliares e monitores.
[4] Art. 205 da CF/88: A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
[5] Acordam, em sessão permanente e virtual da 35ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: Mantiveram a r.sentença V.U.,de conformidade com o voto do relator, que integra este acórdão. Relator Desembargador Morais Pucci – Apelação n º.1023079-84.2019.8.26.0564, da Comarca de São Bernardo do Campo.
[6] Reexame Necessário nº.0001353-09.2011.8.26.0352, da Comarca de Miguelópolis. ACORDAM, em 2ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferida a seguinte decisão: “Negaram provimento ao recurso. V.U.,de conformidade como voto do Relator que integra o acórdão”