Herança colonial normaliza violência contra crianças em ambiente doméstico
Fonte: Jornal da Usp – autoria: Regis Ramos
Uma análise do Fundo das Nações Unidas para a Infância – Unicef indica que 60% dos menores de 5 anos em nível global, cerca de 400 milhões, estão sujeitos à disciplina física ou psicológica violenta em casa. A base da nova estimativa foi obtida a partir de dados coletados entre 2010 e 2023 em 100 países diferentes, focando em práticas como “castigo físico” e “agressão psicológica”. No cenário brasileiro, segundo os dados da Pesquisa Nacional da Situação de Violência Contra Crianças no Ambiente Doméstico, lançada em março de 2023 pelo ChildFund Brasil, cerca de 90% dos casos de violência contra as crianças ocorrem no ambiente doméstico; 72,7% dos casos acontecem onde mora a vítima e o acusado da agressão. A violência para disciplinar as crianças é uma prática que vem de um longo histórico. Em 2014, através da lei conhecida como Lei Menino Bernardo ou Lei da Palmada, o ato se tornou crime. A medida é um mecanismo de defesa para as crianças e prevê que pais que maltratarem os filhos sejam encaminhados ao programa oficial de proteção à família e a cursos de orientação, tratamento psicológico ou psiquiátrico, além de receberem advertência.
Herança do Brasil Colônia
O uso da violência por parte dos pais para com os filhos é normalizado no Brasil. O entendimento de que eventuais problemas ou comportamentos indisciplinados sejam resultado da “falta de tapa” ou “mão frouxa” dos pais é difundido há décadas no imaginário popular. Puxões de orelha, tapas, chinelada, o uso do cinto e outros tipos de agressão são formas tradicionais de se hostilizar crianças, mas com o aval moral da sociedade. Utilizando-se desses e outros meios enraizados na cultura brasileira a agressão deixa de ser agressão e passa a ser mera disciplina. Gritos, xingamentos e humilhações também fazem parte do pacote de permissões. Isso tudo faz parte de uma espécie de tradição disciplinar que remonta aos tempos coloniais. No Brasil Colônia, a Justiça conferia à figura paterna o direito de castigar escravos, mulheres e filhos com “medidas disciplinares”. A professora Marilene Proença, do Departamento de Aprendizagem do Instituto de Psicologia da USP, esclarece a relação entre passado e presente na questão.
“Nós temos uma tradição que veio desde o período da colônia, do período da escravização, em que a gente tem essa relação de associar o espancamento e a violência física a uma forma de educar. Então, essa tradição vem desse período, criando a crença de que o corpo precisa ser dominado, precisa ser domado e, de alguma forma, conduzido pelo adulto através do espancamento e também por palavras hostis para a criança. Então isso dita a forma de se relacionar com a criança, através de ameaças, dizendo que, se ela não fizer isso, vai acontecer tal consequência, vai para o quarto escuro, o castigo no milho, a surra de cinto, enfim. Nós temos muitas histórias e muitos momentos da nossa tradição onde o espancamento e a violência são parte do processo educativo. Então eu acho que para nós rompermos com essa cultura da violência nós precisamos construir outras estratégias e outra concepção de educação infantil.”.
Expectativa x resultado
Para a especialista, educação é sinônimo de diálogo. Procurar estabelecer uma relação de respeito mútuo com a criança é o essencial para um ambiente saudável, no qual o indivíduo tende a se desenvolver melhor e com mais clareza dos limites que devem ser respeitados. “O diálogo não quer dizer que os limites não existam. A argumentação também é um método para colocar o limite. Ela entra para mostrar que certa ação está prejudicando a outra criança, que está causando uma dificuldade para um terceiro, causando um problema, e o outro também está sofrendo com aquela forma que ele está agindo. Eu acho que é muito importante que a gente perceba que dialogar não quer dizer permissividade total, quer dizer que você está explicando o que está acontecendo para a criança. Quando a gente consegue usar essas alternativas no lugar de uma ameaça, por exemplo, a criança começa a perceber que, se ela fizer aquilo, o outro também vai sofrer uma consequência; você vai mostrando, pelo argumento, o limite de uma ação, a partir da presença do outro na relação”, explica.
“É importante construir esse entendimento junto ao filho. Não é imediato, é um processo complexo e você tem que repetir isso várias vezes. É necessário estar atento à criança e observar a forma que ela tem recebido essas informações, propor atividades para trabalhar o coletivo, a partilha, a importância de participar, estar junto para compor, para ajudar. É muito interessante a gente pensar que o processo de desenvolvimento não é algo espontâneo, é aprendido. A aprendizagem é fundamental nas atitudes. Nós, geralmente, falamos da aprendizagem pedagógica e não falamos da aprendizagem das atitudes. Assim como nós aprendemos a ler e a escrever, nós temos que aprender também a nos relacionar com as outras pessoas e com o mundo” , conclui.
*Sob a supervisão de Paulo Capuzzo e Cinderela Caldeira